Tem uma curiosidade que permeia a mente do viajante de tempos em tempos.
Um dia que você acorda um pouco atrasado, o celular quase sem bateria e você longe de um lugar possível pra carregar, uma direção que pegou errada, o horário de funcionamento de uma atração que mudou.
Frente aos acontecimentos, vem a experiente, sábia, profética voz da consciência e sussurra: “será que é hoje que vou passar perrengue?”
No dia 2 de julho de 2022, acordei pensando em como a cama da Penzion Landauer era confortável. Levei muita sorte com o aconchego do meu quarto-sótão. Era sábado de manhã, fazia um dia bonito de sol e estava animada pra continuar as andanças pela República Tcheca. O plano era chegar no início da tarde em Plzeň, ou Pilsen, o lar da histórica cervejaria Pilsner Urquell e onde a ilustrézima cerveja Pilsen foi criada. 🍺
Eu deveria ter desconfiado que ir de Český Krumlov a Pilsen não era um trajeto tão popular entre turistas quando pesquisei como ir de uma cidade pra outra e não saltaram na tela quinze blogs explicando o trajeto de cinco formas diferentes. As informações não estavam tão óbvias, mas encontrei um possível caminho de trem. São apenas 150km, não tem como dar errado.
Tomei meu café e sai num pulo pra rever meus pontos favoritos de Český Krumlov agora iluminados pelo sol antes de seguir viagem. Subir de novo no castelo foi irresistível. Subi, tirei fotos, fiz pose, sorri por fora, sorri por dentro e desci esbaforida pra não perder o horário do trem. Pra minha supresa e tristeza dos meus pés, o caminho pra estação de trem se transformava numa subida penosa. O desci esbaforida logo virou um subi esbaforida.
Apertei o passo, fisgou a canela, doeu os calinhos de semanas de viagem, parei pra tirar casaco e respirar. Tinha comprado ingresso pra visitar a fábrica da Pilsner Urquell no início da tarde.
Será que é hoje que vou passar perrengue?
Segui a subida como se não houvesse amanhã, ou calinhos, ou malas pra carregar. Deu tempo! Subi no trem para a primeira parada, České Budějovice. Hoje não, ufa. Escapei.
Viajar de trem é a minha pequena alegria de pobre, eu amo viajar pro interior. O caminho entre Český Krumlov e České Budějovice foi uma delícia.
O trem parecia novo e estava bem limpo. Paramos em várias cidadezinhas e eu percebia o movimento tranquilo das pessoas entrando e saindo dos vagões em cada estação. Entendia nada do que ninguém falava, pensei que provavelmente elas também não me entenderiam.
Cheguei em České Budějovice com tempo sobrando até o próximo trem pra Pilsen partir.
Atraso de 5 minutos no trem pra Pilsen.
Ah, vai dar tempo. Lá vou eu, Pilsner Urquell!
Atraso 15 minutos.
Hm… vou chegar em cima da hora. Mas vai dar tempo!
26 minutos.
Não é possível…
49 minutos.
Ok, se o trem que liga Ceske a Pilsen for um trem bala, vai dar tempo.
Uma hora e muitos minutos.
Parece que é hoje. Perdi o tour na fábrica, mas depois penso isso. Só quero chegar lá.
E nesse humor embarquei no trem atrasado para Pilsen. Entraram na minha cabine um pai e duas filhas.
O caminho entre České Budějovice e Pilsen foi um desgosto. Sim, o perrengue veio e veio em tcheco.
O trem não parecia tão novo, nem tão limpo. Paramos em uma cidadezinha, só que continuamos parados, e lá ficamos parados. Vi uma mulher com o uniforme da České dráhy, a companhia de trem local, indo de cabine em cabine passando um recado. Nessa hora, tive a confirmação de que não entendia nada do que as pessoas falavam, nem elas me entendiam.
- něco česky mluveného čemu jsem nerozuměl
- I’m sorry, I don’t speak Czech. English?
- No… Deutsch?
Pensei nas 8 aulas de alemão que fiz há mais de dez anos e tentei lembrar de algo, inclusive do motivo triste que fez eu não me rematricular. “Eu sei falar meu nome, pedir uma torta de maçã e contar até 10, vale?”
- Nein, not really. French? Spanish? Portuguese? - seguido de um sorriso amarelo.
“Portuguese” sempre vem seguido de um sorriso amarelo. É o famoso “não custa tentar” na consciência da brasileira que não fala bulhufas da língua local.
- Nein nein - seguido de outro sorriso amarelo. A mulher apontou pra família, sorriu amarelo de novo e saiu da cabine.
Meu celular sem sinal e com pouca bateria tornou a aventura mais interessante.
Olhei para as meninas que estavam ali na cabine como quem diz me ajudem, me traduzam, por favor. A mais velha me devolveu no olhar que claramente dizia desculpe, não prestei atenção em nenhuma aula de inglês. A mais nova seguiu pulando na poltrona.
Com uma comunicação pouco baseada em palavras soltas de inglês e alemão e muito baseada em gestos, caras de dúvida, sorrisos e joinhas, entendi da família que a gente precisava descer do trem, pegar um ônibus até a estação de outra cidade, e de lá a gente pegaria outro trem até Pilsen. Ein Bus, train, autobus. Plzeň! Oh, ideia boa de fazer um trajeto de poucas informações no Google. Tinha certeza que minha forma de pronunciar “Pilsen” soava tudo menos “Plzeň”, mas apenas confiei que pai e filhas seguiam para o mesmo destino que eu. Fale alguma coisa agora, voz da consciência.
E foi assim que passei a seguir uma malinha do Scooby-Doo em alguma cidade do interior do interior da República Tcheca pra garantir que ia embarcar nos veículos certos, chegar sã e salva pra tomar uma Pilsen em Pilsen no final do dia.
Viajar de trem é a minha pequena alegria de pobre, eu amo viajar pro interior. Mas put4 merda.
Plzeň começou uma amargura, mas terminou um delícia. O perrengue veio, veio em tcheco, mas conhecer essa cidade foi um presente na viagem.
Cheguei com muita fome, com calor, estava longe do hotel. Desci direto para a fábrica da Pilsner, consegui remarcar o tour pela cervejaria e pude me alimentar da mais pura Pilsen direto do barril de origem - alimentar mesmo, não tinha nada além do suco de cevada nas proximidades. Era mais saborosa do que eu imaginava, tinha um gosto marcante e bem fresco.
Andei pela fábrica, que é linda, pelo centro da cidade, que também é linda, subi num bar vista pra praça principal pra comer algo e lá fiquei por um tempo. Vi turistas andando pela praça, vi o movimento de pessoas na igreja. Vi de longe o que parecia ser um pedido de casamento.
Fui pro hotel que era longe e surpreendentemente aconchegante. Liguei a TV e me entreti por alguns minutos com uma programa que parecia um Casos de Família tcheco. O que será que ela fez pra ele??? Isso sim que é perrengue.
O dia se manteve ensolarado até seu por do sol por volta das 22h. Fiquei sentada na janela aconchegante observando o cair da lua. Foi um dos finais de dia mais bonitos da viagem. Por coincidência, meu hotel ficava ao lado de uma pequena estação de trem.
Ah, o interior…